Seguidores

domingo, 16 de maio de 2010

Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira ...




Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Expresso'

11 comentários:

Regina Rozenbaum disse...

Manuel, poeta, vovô, amado!
Que homem é esse? Jornalista, cronista daí? UAU!!! "O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende." Para um final de domingo...aff valeu dimaiiisss,sô!
Beijuuss n.c.

www.toforatodentro.blogspot.com

angela disse...

Bonito texto, vale a pena pensar nele.
Agora um amor assim as vezes nos pega na vida, meio de surpresa, sem aviso previo e aí não em jeito não. Ele vai nos acompanhando e tem momentos que se fica feliz somente por amar.
beijos

Manuela Freitas disse...

Olá Caro Manuel,
Então ontem brincou muito? Espero que sim, porque brincar é muito bom!
Este texto do Miguel, é bem um texto do Miguel, sempre muito controverso!
O amor é mesmo a loucura, só que tem um preço ou vários!...Esse amor até pode levar ao suicídio, ao descontrole total. Apanha-se esse combóio e é pior que o TGV!...rsrsrs
Hoje as pessoas são muito materialistas e individualistas, a contabilidade mete-se pelo meio, esfria tudo!...
Sei lá o que digo, com certeza também não é para perceber!
Bjs,
Manú

Unknown disse...

Querida Manú há muito que não me divertia tanto,vou repetir mais vezes,sempre brinco com ela mas, não com a intensidade de ontem .Valeu a pena.
Gosto muito dos texto do Miguel,fazem-me sonhar e como por enquanto, sonhar não paga imposto...

Beijo.

Clecilene Carvalho disse...

As pessoas acomodoram-se e isto estendeu-se para o amor, tudo parece, relmente, motivo de praticidade. É como dizer vou apaixonar hoje por tal pessoa é pronto, por isso tem tanta gente decepcionada no amor. Não há mais o encanto, o amor destemido e puro.

Beijos.

Glorinha L de Lion disse...

Lindo texto, para se pensar, refletir e chegar à uma conclusão: o amor é tão grande que só cabe em si mesmo. Beijos e até o branco amanhã!

Jorge disse...

Li todo este texto "num só fôlego", o que raro acontece e... gostei!!!
Nos dias de hoje, já não existe uma "filosofia de amor", mas apenas uma "filosofia de egoísmo".
Tenha uma boa semana.
J

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu amigo
Um belo texto, com muitas verdades.


A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.

Eu amei sem pensar em mim, sem barreiras...dei tudo mesmo, estou vazia.

Beijinhos

Rosan disse...

olá.
amor, palavra pequena que muito nso diz...
amor que sente sem querer...
amor que quer sem poder....
amor que procuramos e nem sempre encontramos...
amor que se esconde ...
amor que se apresenta...
amor que todos buscamos...
amor, sem ele não vivemos...
amor mesmo que esteja além desta vida...

Beijo

Anónimo disse...

Ainda há quem ame com essa loucura total, sem pensar na vida e ficar presa em labirintos de emoções por amar.
kiss Kiss

Viviana disse...

Olá Manuel

Que coincidência interessante!

Nos últimos dias tenho reflectido bastante sobre o que é que se chama AMOR nos nossos dias.

Apercebo-me que infelizmente, existe muito pouco AMOR, AMOR de verdade.

No próximo Domingo irei falar sobre o amor.

Estou a preparar-me.

Quero tocar no "cerne da questão."

Asim Deus me ajude, pois vou precisar.

Quanto ao Miguel Esteves Cardoso, ele tem o seu estilo muito peculiar de escrever, que nós conhecemos.

Compreendo o que ele quer dizer, e respeito integralmente, mas como tenho outros valores, outra formação, inclusivé a formação espiritual, naturalmente há nesse texto coisas que não são propriamente as que norteiam a minha vida.


Desejo-lhe um lindo dia

Um abraço

viviana